sábado, 31 de março de 2012

A Senhora da Noite.


Sentiu-se perdida, olhou em redor mas os seus olhos, nitidamente, pouco mais viam que uns metros a sua frente, estava muito escuro, as árvores cobriam quase totalmente o céu, nem mesmo o luar intenso conseguia ser suficiente para clarear um pouco mais o caminho á sua frente, era aterrador o cenário com que se deparava, não só pela escuridão como também pelos ruídos que se faziam sentir, penetravam-lhe pelo corpo, faziam estremecer-lhe as pernas, de tal forma que para se deslocar centímetros que fosse só o conseguia fazer a muito custo.

Não sabia como se tinha perdido do restante grupo, mas facto era que não os via a algum tempo, não os ouviu, nada, estava só, cada vez mais só e sem saber ao certo para onde ia, não quis parar, teve medo de ficar ali e avançava, quanto mais avançava mais medo tinha, a cada passo mais sons se faziam ouvir, sons estranhos que não conseguia identificar, nada que tivesse presenciado anteriormente, era todo um panorama que levava ao desespero, só lhe apetecia gritar, mas nem para isso a coragem era suficiente, não sabia o que fazer…

Uma presença fez-se sentir nas suas costas, segundos depois e enquanto olhou para trás, ouviu passos a sua frente, voltou-se, nada, não viu nada nem ninguém, ficou paralisada, sem reacção, ao mesmo tempo voltou a ouvir passos em sua direcção, lentamente mas cada vez mais próximos, focava um ponto para vislumbrar algo, mas nada, continuava sem ver nada.

Todos os barulhos pararam, sentiu um bafejar na sua nuca, uma mão a passar-lhe junto ao corpo, colada ao seu braço e subindo lentamente, estava petrificada, não percebia o que estava a acontecer, desejou que tudo fosse um sonho, nada fosse real, ao mesmo tempo toda aquela sensação trazia-lhe acalmia, deixou de ter medo, sentiu que a mão tinha parado ao mesmo tempo que um peito se encostou nas suas costas, um beijo na nuca sucedeu-se a tudo aquilo, fazendo-a fechar os olhos e sonhar.

Nunca se tinha sentido assim, nunca tinha vivido nada assim, aquela mão, aquele corpo que se lhe encostara, aquele beijo, não entendia o que se passava, mas não queria que acabasse, percebeu que pelo porte seria um homem, corpulento por sinal, poderoso, sentia isso, cheirava-lhe bem, uma mistura de cheiros agradáveis, estava extasiada com tudo aquilo e continuava a desejar que tudo fosse um sonho, um sonho sem fim.

Uma pequena sensação de dor apoderou-se do seu corpo, algo diferente acontecera, sentiu uma picada ligeira no pescoço, seguida de um escorrer pelo mesmo de um liquido, levou a mão ao local e ao colocar a mão a sua frente viu que era sangue, o seu sangue, deixou de sentir o corpulento homem encostado a si, mas a sensação de prazer continuava lá, nada tinha mudado, apenas ela, estava diferente, não sentia medo de nada a partir daquele momento, achava-se capaz de fazer tudo como se um poder enorme tivesse tomado conta do seu corpo, reparou no clarear da sua pele ao mesmo tempo que reparava que os seus olhos já conseguiam ver melhor, via tudo, todos os animais, todas as plantas, todas as árvores, todos os seus sentidos ficaram mais apurados, estava diferente.

O corpulento homem surgiu a sua frente, era o que desejava que fosse, tudo o que tinha sonhado estava agora ali a sua frente, sentiu que a sua vida acabara de mudar que lhe pertencia, quis que assim fosse, quis ser propriedade dele, quis ficar com ele para sempre, ajoelhou-se instantaneamente á seus pés esperando que ele lhe dissesse algo.

Um agarrar nos ombros de uma assentada a colocou frente a frente com ele, olhos nos olhos, não conseguia desviar o olhar dele, era penetrante, estava completamente enfeitiçada, apaixonada, não tinha palavras capazes de sair da sua boca ao mesmo tempo que não tirava o olhar dos lábios dele, uns lábios vermelhos, carnudos que apeteceu-lhe beijar mas sem conseguir, ele falou-lhe, disse-lhe o que queria ouvir, que ficariam juntos para sempre, que seria sua mulher, a sua rainha, o complemento que lhe faltava para o resto das suas vidas, para a eternidade, que juntos seriam os donos e senhores da floresta onde estavam naquele preciso momento, que tal como ele era o senhor, ela passaria a ser a senhora da noite…

quarta-feira, 28 de março de 2012

O Anjo

Era apenas mais um, um entre tantos outros que vagueavam pelas ruas da cidade, não era nem mais nem menos que isso, só mais um, só mais um dos muitos que eram indiferentes aos que diariamente se apelidavam de pessoas normais, aqueles que todos diziam ser os parasitas de uma sociedade que por si só já se encontrava podre, eram isso mesmo, vírus humanos que, á vista deles não passavam de uma “doença” contagiosa que era importante evitar, não passando sequer pelas suas cabeças que nada é certo, que tudo na vida têm um principio, um meio e um fim, e que o fim deles, ou até mesmo o meio, poderia contemplar-lhes algo idêntico ao qual não poderiam fugir… 

Também ele fôra normal, com teto, com família, com amigos, dinheiro, roupas lavadas nada parecidas com as que ostentava agora, que a única agua que viam era a da chuva ou a de uma das muitas fontes da cidade, também a aparência tinha tido contornos de uma beleza incalculável que hoje nem uma sombra era disso, tornou-se um homem rude, feio, sujo, sem classe, mas essa classe que se julga pelo aspeto ele tinha-a, tinha-a no caracter, na educação, não era pelas voltas que a vida tinha dado que deixava de ser quem era, igual e em alguns casos melhor que os muitos que para ele olhavam de lado.

Mal tratado pelos que o rodeiam, escorraçado pelos que se cruzam esporadicamente com ele, descriminado pela sociedade em geral, levava a sua vida sem esperança, sem rumo, apenas com a certeza que tudo iria acabar um dia, mas não tinha coragem para ser ele a fazê-lo, preferia esperar, mesmo que isso o fizesse sofrer ainda mais que uma possível atitude mais drástica, atitude essa que aos olhos dele e de toda a sociedade seria indiferente e passaria despercebida.

Mas mudou, tudo muda de um dia para o outro, foi ele, aquele que ninguém queria por perto, aquele que já não tinha vida ou pelo menos algo que se parece com o que apelidamos de vida, por estar ali, por só ter o acto de observar como objectivo diário, que a salvou, saltou em seu auxilio quando ela estava prestes a ser abarroada por um carro, por certo o suficiente para lhe retirar um futuro promissor que a sua idade e beleza faziam adivinhar, se ele não estivesse por perto o fim poderia ser trágico, mas não o foi, foi como se de um milagre se tratasse, como se um anjo tivesse caído do céu, pronto para proteger aquela pobre rapariga. Ele era o seu salvador! Nunca o poderia esquecer, salvou-a, e com isso naquele dia ele foi importante, pelo menos para alguém, para ela, isso deu-lhe forças para aguentar o sofrimento diário que se entranhava no seu corpo, pelo menos por mais uns tempos, deixou de ser só mais um, passou a ser o anjo dela, aquele que para todos os outros era um Vagabundo!

terça-feira, 27 de março de 2012

Era ele...

Ela gritou, alto, tão alto que tudo a sua volta estremeceu, ele que se encontrava na cozinha largou tudo o que fazia e correu em seu auxílio, não hesitou, correu como se a distancia fosse quase ao nível de uma maratona, quando chegou lá estava ela, continuava a gritar, chorava, contorcia-se com dores, era uma visão demolidora que o agastava, tinha de a ajudar o mais rápido possível, nem pensou, pegou nela ao colo e dirigiu-se para a porta, tinha de a socorrer, de a levar para o hospital, ela precisava de ajuda e ele não tinha habilitações para o fazer.

Nem deu pelo tempo passar, nem sequer o caminho que fez conseguiu ver, conduzia a alta velocidade enquanto olhava para ela no banco ao seu lado a gritar, a chorar, não parava por um segundo que fosse, deu-lhe a mão para ela sentir mais conforto, ela apertou, apertou muito, não falava, só chorava e continuava a gritar, foi assim toda a viagem até a porta do hospital, e já a entrada nada mudou.

Em seu auxílio vieram duas enfermeiras, ele sem noção do que dizia, tratou-as com desagrado, gritou com elas, insistiu para que se despachassem, como se não fosse isso o que estava a acontecer, não a largou por um momento, a sua mulher era o seu bem mais precioso e não aguentava vê-la assim, não podia fazer nada, estava impotente, ela em nada se alterava, chorava, gritava, apertava-lhe a mão cada vez com mais força, lagrimas escorriam pela cara, já havia sangue também em seu redor, algo se complicava…

Não o deixaram entrar, não podia, não estava em condições para tal, lá dentro ela chamava por ele, a sua ausência perto dela era pior que tudo aquilo porque estava a passar, precisava dele ao seu lado, pediu, entre lagrimas, para o irem buscar, muito a custo consentiram e ele foi, ficou perto dela naquele momento, momento esse que podia mudar tudo, em que toda a vida deles em conjunto lhes vinha a cabeça, todas as alegrias, todas as tristezas, as dificuldades, tudo, mesmo tudo, tudo.

As dores eram cada vez mais fortes, a equipa medica a sua voltava tentava ser célere e evitar o pior, havia complicações, o sangue continuava a jorrar como se de uma fonte se tratasse, era critico, e ele lá, sempre lá, ao lado dela, nunca a abandonou, aguentou, por ele mas sobretudo por ela, ela sentia isso, sentiu-se mais forte e com isso parou de chorar, foi enorme aos olhos dele, ganharam forças que já não tinham na esperança que tudo corre-se bem.

Silêncio, um silêncio rompeu a sala, foi por segundos mas pareceu a todos uma eternidade, eles olharam-se entre si, nos seus lábios rasgou-se um sorriso, estava ali, a muito custo, com muito sofrimento, entre choros e dores, o seu bem mais precioso, aquilo com que sonhava e que a tanto esperavam, estava ali, como se um desenho tivesse sido feito e entregue especialmente para eles, como se de uma das mais belas obras de arte se tratasse, era deles, só deles, era lindo, perfeito era o seu bebê!

segunda-feira, 26 de março de 2012

Aquele Dia!


Acordou, era mais um dia na vida dele, nada mais que isso, todos os dias acordava, todos os dias saia da cama, fazia a sua higiene pessoal, vestia-se, saia de casa, entrava no carro, parava no café para comer a sua sandes e beber o seu café, voltava ao carro, seguia até ao trabalho, estacionava ao chegar, quase sempre no mesmo lugar, cumprimentava o porteiro do edifício, apanhava o elevador com mais meia dúzia de colegas, picava o cartão de entrada, e sentava-se a trabalhar, era todas as manhas assim até chegar a hora de almoçar…

As tardes pouco variava na sua génese, também elas eram iguais, voltando do almoço, voltava a sentar-se e a trabalhar, sempre no seu computador, sempre com os telefonemas do costume, sempre igual, dia após dia, e já por alguns anos, chegava a hora de sair, ele saia, entrava no carro, a caminho de casa parava para beber um café, continuava até casa, estacionava na garagem, não falava com mais ninguém, entrava em casa e ia de imediato tomar banho, vestia o pijama e fazia o jantar, jantava num piscar de olhos e sentava-se a ver televisão na cama, normalmente até as tantas, até ter sono, quando este aparecia desligava, aninhava-se e dormia, dormia sempre bem, sem parar até o despertador voltar a tocar, e acordava para mais um dia, igual a todos os outros, aos que já a anos eram iguais!

Mas chegou o dia que ia ser diferente, que acordou com um sentimento de que algo estava errado, que algo tinha de mudar, que nada fazia sentido e que já não vivia, era só mais um num mundo podre e com uma vida solitária e miserável, não podia continuar assim, tinha de fazer algo, tinha de ser diferente do que era até então, foi como se algo ou alguém lhe tivesse batido durante a noite e o tivesse feito ver que estava a perder tempo, que estava a morrer aos poucos, que quando chegasse esse dia ia perceber que não era nada nem ninguém.

Levantou-se e desde logo quis mudar, não se lavou, vestiu a mesma roupa do dia anterior, saiu de casa, mas foi a pé, não comeu, não foi trabalhar, falou a todas as pessoas que por ele passaram na rua, sem pudor, disse tudo o que quis dizer, disse tudo o que sentia, riu-se, riu-se muito, com os que passavam, sozinho, para dentro e para fora, sentiu-se bem, almoçou, com tempo, afinal de contas tudo ia ser diferente naquele dia e tinha todo o tempo do mundo, não se preocupou, não quis saber, viveu aquela manhã e aquela tarde como se fossem as ultimas da sua vida, pensou em tudo e não pensou em nada, não quis morrer sem saber o que era a vida se fosse vivida de forma diferente, gostou, gostou muito e aproveitou ao máximo. 

Era tarde, não quis ir para casa, não quis tomar banho, não quis fazer o jantar, não quis ver televisão na cama, quis ficar por ali, na rua, a ver as pessoas, a ver as luzes, os sons, o ambiente noturno que o rodeava e que lhe era estranho, bebeu, aproveitou aquela noite, mais uma vez como se da ultima se tratasse, nada o demovia de tornar aquele dia um dia diferente, tinha de ser diferente, foi com essa intuição que ele acordou, voltou para casa, já tarde, muito tarde e a caminho algo de súbito aconteceu, parou, viu, ouviu, sentiu, tudo o que tinha presenciado nesse mesmo dia e apercebeu-se que perdeu anos da sua vida, mas que aquele dia tinha valido por todos esses dias e anos perdidos, o coração bateu lentamente, cada vez mais lento, mais e mais até parar, parou e ele caiu, caiu com um sorriso nos lábios, e quem o viu e conheceu naquele dia ficou com a ideia que ele viveu, viveu feliz…